Por João Paulo Mariano
Ter a segurança que o salário vai cair todo mês e de que não se vai perder o emprego já foram sinônimos de segurança financeira. Porém, muitos servidores públicos utilizaram desses artifícios para conseguir crédito em cima de crédito. Sem controle, não há salário que segure.
Pesquisa do Serasa Experian, divulgada neste mês, mostra que 29% dos servidores em todo o País, tanto federais quanto estaduais ou distritais, estavam inadimplentes. Entidades do setor indicam que, no DF, a dificuldade ocorre devido ao descontrole em empréstimos, em especial do consignado, e a desvalorização do empregado.
A agonia de não ter dinheiro no fim do mês é vivida por uma servidora de 37 anos. Ela vive um misto de desespero e vergonha devido a situação e, por isso, pediu para não ser identificada. Funcionária há 12 anos da Secretaria de Saúde, boa parte desse tempo com dois empregos, ela não sabe o que é contar com mais que R$ 2 mil do salário líquido de cada mês. Cerca de 30% vão para o pagamento dos empréstimos consignados, outra parcela para descontos feitos direto na conta e para sustentar as duas filhas – uma de dois anos e outra de 13 – ela só conta com o restante.
A servidora nem sabe dizer o número de empréstimos que já pegou, porque toda vez que tem oportunidade de receber crédito pega mais um pouco. Apenas no Banco de Brasília (BRB), onde recebe o salário, tem R$ 150 mil em dívidas. Ainda existem débitos em outros três bancos com dívidas de R$ 20 mil, de R$ 6 mil e de R$ 4 mil.
Tudo começou com o primeiro empréstimo, em 2012, quando ela começou a pegar dinheiro emprestado para resolver uma coisa ou outra. Depois, vieram gastos com os filhos, com a saúde e, por fim, tudo virou uma bola de neve. Ela chora ao pensar em tudo que deve, sem ter um horizonte de alívio. “Eu trabalho tanto, mas cheguei a um ponto em que o meu dinheiro não rende para nada. Não tenho mais saúde, nem dinheiro”, afirma a senhora que, apesar de tudo, acredita que vai mudar de vida.
Surpresa para pesquisador
O gerente de Solução e Estratégia da Serasa Experian, Héber Filho, explica que essa não é uma situação tão incomum no Brasil, mas ainda assim a porcentagem de 29% de servidores federais e estaduais inadimplentes surpreendeu. “A gente eperava um percentual bem menor. Quando comparamos essa dado com o total da população inadimplente, que hoje está em 40%, a distância não é muito grande”, afirma o pesquisador ao lembrar que o funcionalismo sequer foi atingido pelo alto desemprego. Um dos maiores culpados pelo endividamento e inadimplência seria a contratação de crédito consignado de forma fácil e sem cuidado.
No ambito federal, a inadimplência dos servidores ficou em 69%. Já entre os estaduais e distritais, o índice ficou em 37%. Quem puxou esse dado para cima foram os mais jovens: dos 18 aos 30 anos, são 37,3% de inadimplentes, seguidos pelos de 41 a 50 anos (30,9%) e pelos de 36 a 40 anos (29,8%). Em relação a renda, 46,6% dos servidores que ganhavam até um salário mínimo estão inadimplentes.
Para a presidente da Caixa de Asssitência Beneficente ao Servidor do GDF (CABS-DF), Elied Barbosa, a situação é grave, com mais de 4 mil servidores do DF com mais de 70% de seu salário sendo retirado pelos bancos. É o caso de Carina Silva, 40 anos, servidora da Secretaria de Educação. Dos R$ 5,7 mil de salário líquido da folha de pagamento, apenas R$ 1,9 mil chegam à conta.
Houve até dois meses em que ela ficou sem receber nada devido aos inúmeros descontos – 30% são retirados da folha para pagar os empréstimos de crédito consignado; outros 33% são debitados da conta corrente; e ainda há uma porcentagem que vai para outros bancos. “O BRB vai dando crédito, crédito, crédito, mas depois cobra tudo. Na época em que eu comecei a pegar a grana, não entendia muito de educação financeira”, afirma a mulher que tem um novo mantra: “ou eu me controlo ou eu passo fome”.
As dívidas começaram após uma cirurgia bariátrica, em que ela trocou a compulsão de comer pela de gastar. Agora, as dívidas passam de R$ 300 mil.
Negociação é um desafio
Com facilidade para obter crédito junto aos bancos e financeiros, os parentes e amigos de funcionários aproveitam para pedir cada vez mais empréstimos. O BRB, banco que recebe a carteira de pagamento dos 110 mil servidores do Governo, não informou quantos empréstimos consignados foram pedidos por servidores por considerar o dado “estratégico”. Porém, o montante, segundo as entidades ligadas aos servidores, é grande.
Para o presidente do Sindreta, Ibrahim Yussef, a grande dificuldade é negociar as situações de endividamento. “Já foi colocado na pauta de discussões do sindicato diversas vezes. A intenção é que se crie um financiamento especial, com um parcelamento maior das dívidas”, alega. Na tentativa de forçar negociações entre governo, banco e servidores, foi criada a Caixa de Assitência Beneficente ao Servidor do GDF (CABS-DF), no ano passado.
No mesmo barco
A presidente da instituição, Elied Barbosa, explica que tudo começou depois dela passar por uma situação de dívida em cima de dívida. Com 12 anos de servidora, ela garante que já passou por poucas e boas financeiramente. Ela criou um grupo no Facebook e viu que muitos outros estavam na sua situação de antes.
A partir daí, só faltava a organizar associação que auxiliasse a todos. O gatilho veio quando, em 2016, um agente penitenciário postou uma foto nesse grupo afirmando que iria se matar porque não aguentaria passar pelo terceiro mês cheio de dívidas.
“Criamos a associação com o objetivo de facilitar as negociações junto ao BRB. Já é possível sentar e negociar. Mas ainda não é tão fácil. Seria preciso que as soluções fossem institucionalizadas, não apenas decisões da gerência para pessoas específicas”, reclama. Para ela, há ainda muito no que avançar.
Por nota, o BRB informou que existem linhas de refinanciamento de dívidas para tratar questões pontuais, “visto que existe um grande controle na geração dos limites de crédito”. A empresa também afirmou que oferece palestrar de educação financeira e que, desde 2012, mais de 25 mil pessoas foram informados sobre o crédito consciente.
O planejador financeiro Afrânio Alves dá dicas aos servidores inadimplentes ou endividados.
Um, é preciso se reconhecer como endividado. “É algo comportamental e cultural no Brasil. A pessoa precisa entender que não é assim que se lida com o dinheiro”, afirma.
Dois, buscar ajuda é essencial. Ele indica o programa para superendividados do TJDFT. Lá, a pessoa recebe atendimento de um psicólogo, de um advogado e de um planjeador financeiro que avaliarão a situação do inadimplente.
Aí, tente equacionar os débitos.
Fonte: Jornal de Brasília