Por Carolina Samorano

Parece até coisa de ficção científica: um medicamento que, uma vez na corrente sanguínea, age como uma espécie de “blindagem” contra o HIV. Se o vírus entra, o remédio – uma combinação de duas substâncias antirretrovirais – corta logo o seu barato. Impede a sua reprodução e a infecção morre na praia antes mesmo de nascer.

Chamado de PrEP (profilaxia pré-exposição, na sigla em inglês), o protocolo já é realidade nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. Desde maio passado, quando o Ministério da Saúde anunciou que traria a metodologia para o Brasil, apareceu em rodas de discussão e matérias de jornais por aqui também. Tomou de susto setores mais conservadores da sociedade. Ganhou o entusiasmo de especialistas. Até o fim de dezembro – que, coincidência ou não, é considerado o mês de alerta à prevenção da Aids –, ele deve finalmente começar a ser distribuído aos grupos priorizados pela pasta.

A tecnologia não é exatamente nova. O Truvada, nome comercial do composto, é fabricado pela farmacêutica americana Gilead e já era usado há alguns anos no coquetel de tratamento de soropositivos. Agora, sabe-se, é eficiente também para gente quem nunca teve contato com o vírus, mas flerta perigosamente com a possibilidade, como profissionais do sexo, por exemplo.

A ideia é de que, enquanto a medicina não for capaz de encontrar um meio de curar a infecção, possa pelo menos evitar que ela se alastre. Segundo testes clínicos, se seguida à risca, a PrEP tem 99% de eficácia. No que se refere à Aids, dispensaria a camisinha. Para todas as outras doenças sexualmente transmissíveis, no entanto, em nada acrescenta. É esse um dos maiores pontos de discordância de quem se coloca contra a adoção do método.

“Ele não chegou para substituir a camisinha”, argumenta Juan Carlos Raxach, médico e coordenador da área de promoção da saúde e prevenção da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). “A camisinha ainda é, por excelência, a rainha para impedir a infecção por HIV e outras DSTs. O Truvada chegou para ampliar as possibilidades de prevenção”, resume.

O fim da camisinha?
A intenção, diz o especialista, não é desestimular o uso do preservativo, mas oferecer uma possibilidade a quem, a despeito das campanhas educativas, simplesmente escolhe não usá-lo. “Durante muito tempo, negamos essa realidade (de pessoas optarem pelo sexo desprotegido). Elas tinham medo de assumir que, mesmo que soubessem da importância da camisinha, ainda assim não usavam. O remédio só é eficaz para o HIV. Mas, querendo ou não, ele ainda é a única DST para a qual não temos a cura definitiva”, sublinha Raxach.

Os dados mais recentes do Brasil sobre HIV e Aids, divulgados no início do mês pelo Ministério da Saúde, sinalizam, na visão dos especialistas, a favor da chegada do Truvada ao SUS. Embora em números absolutos os casos detectados tenham caído 5,2%, comparação entre 2016 e 2015, os índices de diagnósticos registrados em alguns grupos específicos ligaram sinal de alerta nas autoridades e entidades de combate ao vírus.

Em dez anos, a taxa de detecção do HIV em jovens do sexo masculino de 15 a 29 anos triplicou: de 2,4 casos por 100 mil habitantes, em 2006, para 6,7, em 2016. Na faixa etária de 20 a 24, o cenário foi ainda pior: passou de 16 casos a cada 100 mil pessoas para 33,9.

A estratégia do governo para a distribuição do remédio – pelo menos inicialmente – leva números como esses em consideração. A princípio, o projeto é enxuto: cerca de 7 mil pessoas, consideradas grupos de maior risco à exposição, vão receber o medicamento via SUS. Além de voluntários de São Paulo e do Rio de Janeiro que, desde 2014, testam a segurança e a eficácia da estratégia, os contemplados incluem profissionais da saúde, homens que fazem sexo com homens, transexuais e casais sorodiscordantes (quando um dos parceiros tem o vírus e o outro, não).

“A grande diferença do Brasil para outros países que usam o Truvada como prevenção é que, aqui, isso está sendo implantado como estratégia de saúde pública”, compara Valéria Paes, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) no DF. “Nos EUA, por exemplo, você não tem isso inserido numa campanha de saúde de forma ampla”. Apesar do que já acontece com outros antirretrovirais, o Truvada não será vendido em farmácias ao consumidor final.

Embora o grupo sob o guarda-chuva do protocolo seja pequeno, a esperança dos especialistas é que, comprovada a eficiência do método em diminuir as novas infecções por HIV e vencida a barreira orçamentária, a distribuição seja ampliada. Mesmo porque brigar contra o vírus não sai barato: na Europa, por exemplo, um mês de tratamento para uma única pessoa chega a custar cerca de 400 euros (o equivalente a R$ 1.540). A cota brasileira de investimento, inicialmente, é de US$ 1,9 milhão para a compra de 2,5 milhões de comprimidos.

PrEP: Pequeno guia de iniciação
Para entender melhor sobre a PrEP e as polêmicas que rondam a sua incorporação ao rol de medicamentos anti-Adis, Juan Carlos Raxach, da Abia, e Valéria Paes, da SBI, responderam perguntas elaboradas pelo Metrópoles.

O que é PrEP?
A profilaxia pré-exposição consiste no uso de um antirretroviral antes da exposição ao vírus da Aids para evitar que ele se replique no organismo. O medicamento aprovado atualmente para esse fim é uma combinação de tenofovir e emtricitabina.

Como funciona?
Para ser eficaz, o medicamento deve ser tomado diariamente. Para garantir a eficácia, o uso deve ter início pelo menos 21 dias antes da exposição desprotegida ao vírus.

Segundo Juan Carlos Raxach, os resultados ainda são inconclusivos, mas já existem testes para uso do medicamento em dias não consecutivos, o que diminuiria o custo do tratamento – tomando um dia sim, outro não, por exemplo. Por enquanto, no entanto, a segurança só é garantida com uso diário.

Para quem serve?
Estão na mira do Ministério pessoas consideradas de maior risco à exposição, como homens que fazem sexo com homens, profissionais de saúde, profissionais do sexo e casais sorodiscordantes. A triagem será feita em centros de tratamento e os contemplados deverão passar por uma série de exames laboratoriais e um rígido acompanhamento de saúde mesmo depois de iniciada a PrEP.

Há efeitos colaterais?
Estudos mostraram índices menores do que 1% para efeitos colaterais graves – número que, segundo especialistas, fica dentro da média da maioria das medicações. Além de dores de cabeça leves no início do protocolo, consequências mais nocivas incluem problemas renais e ósseos. Assim, pessoas com histórico de doença renal ou osteoporose, por exemplo, não devem receber Truvada.

É um substituto à camisinha?
Não. A PrEP tem sido divulgada como uma “ampliação” da prevenção, e não como alternativa a ela. Embora seja eficaz contra o HIV, não protege o usuário de nenhuma outra doença sexualmente transmissível.

“O que a gente tem observado, ao longo dos anos, é que apenas as campanhas de uso de preservativo não têm sido mais suficientes para conter a transmissão do vírus. Com base nisso, surgiram novas pesquisas mostrando que a PrEP poderia ser uma boa aliada à prevenção”, comenta Valéria Paes, da SBI.

A ideia é de que o comprimido sirva como uma espécie de “tampão” para pessoas que, mesmo cientes da importância da camisinha, optam por não usá-la. Ainda segundo Valéria, recentemente, em pesquisa sobre o HPV, 50% dos jovens admitiram que não usam preservativo com regularidade.

A Aids não é mais aquela doença aterrorizante dos anos 1980 e 1990. Essas pessoas não viram o Cazuza e outras estrelas padeceram da enfermidade. Elas pensam ‘ah, é uma doença crônica como outra qualquer’, mas não sabem o impacto que é ter um diagnóstico desses.

Valéria Paes, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia no DF

Ela aumenta a incidência de outras doenças?
Resultados preliminares de estudos em países que adotaram a PrEP há mais tempo mostram que houve, sim, aumento de casos. Por isso, sublinha Valéria, é importante que o protocolo preveja um acompanhamento rigoroso da saúde dos seus usuários, com rastreamentos periódicos para DSTs.

Tanto que, para Juan Carlos Raxach, o aumento desse índice pode estar ligado, inclusive, a um maior número de diagnósticos, não necessariamente de incidência da doença. “O que acontece é que, como se faz um acompanhamento mais próximo da saúde desses indivíduos, os países estão notificando mais casos, porque existe uma busca ativa por eles agora”, argumenta. “E isso pode ser uma coisa boa, porque essas pessoas são acompanhadas, diagnosticadas e tratadas precocemente”.

Fonte: Metrópoles